A nossa querida América

Por Dany Velásquez

A nossa querida América, e falo mais especificamente a do sul, a Latina, porque a outra, a do Norte (ainda que a cada dia vire mais latina), faz muito tempo não é mais nossa: como num filme de ciência ficção, tem sido dominada pela lado escuro da força, tem se convertido numa “terra de Mordor onde as sombras se deitam”, como diz o poema que Gandalf recita para Frodo na obra de Tolkien; essa, nossa querida América, está atravessando um momento crítico da sua história.

Crise que, como em outros momentos da história, é a repercussão dos jogos macabros dos donos do capital, dos senhores das armas, mas que atinge os locais mais vulneráveis, aqueles que eles tem tornado mais fracos e de onde continuam extraindo, insaciavelmente, seus recursos, suas riquezas. E, alias, através do medo, do terror, da violência e de toda a maquinaria de fascínio, de espetáculo, que alimenta a vaidade efêmera, as necessidades falsas das pessoas, estes senhores exigem gratidão: por ter trabalho, por ter “segurança”, por viver numa suposta “democracia”, em fim, por estar dentro do sistema, por ser escravo dele.

Falo da Nossa América, mas também falo de África, da Síria, Palestina e demais países do Oriente que vivem de maneira cruel as consequências dessa guerra de caráter global que tem se instalado.

Vivemos um momento no qual as garantias e conquistas sociais, conseguidas com tanto esforço, sangue, lutas, vítimas, mártires, estão sendo barradas; onde os princípios verdadeiramente democráticos, de justiça, de direito, assim como seus lideres populares, estão sendo exterminados, estão sendo condenados.

Um momento em que, como num patético reality show, os mais ignorantes, burros, babacas, estão se dando bem, e se perfilam como os grandes vencedores do espetáculo. Um momento no qual, por um lado se vive um presente futurista, com uma tecnologia e capacidade de comunicação sem precedentes na história; mas pelo outro, os velhos fantasmas do dogmatismo, do extremismo ideológico, político, religioso, racial, etc., estão de novo assombrando, querendo se impor e estão provocando um retrocesso social absurdo, assustador.

Estamos vivendo em totalitarismos disfarçados de democracias, como Saramago anunciou anos atrás, em Narco-Estados, onde as fronteiras entre o mundo do crime, da máfia, e do poder oficial, são cada vez mais porosas. Nossos governantes, mandatários, mais do que parecer os homens dignos e sábios que conduzem a polis pelo melhor caminho, assemelham-se a (ou muitos já o são) chefões do crime organizado. E essa é a ética e a estética que serve como modelo para a sociedade: a do NARCO. Aquela do luxo, do excesso, do extravagante, aquela onde o importante não é apenas ter, mas mostrar que se tem, e se não se tem, aparentar, a do lucro pelo lucro, a do acumulo, a do hiperconsumo, a do extermínio!

Porém, esta crise não é apenas econômica, política, como a mídia, com seu grande poder de manipulação, de construção de falsas verdades e necessidades, quer mostrar. Não se trata apenas da luta entre partidos, classes sociais, ideologias de qualquer tipo. E não que todas estas tenham se superado. Pelo contrário, continuam se reciclando e fortalecendo, como aquelas doenças que viram imunes a múltiplos medicamentos. Trata-se, acima de tudo, de uma crise de humanidade, da espécie, do homo sapiens. Nesse caminho pelos qual o humano se enveredou está acabando com o planeta, com os recursos naturais. A crise ambiental não e mais ciência fiação, está aí, aos nossos pés. Estão desaparecendo rios, os mares não param de vomitar o plástico que vem das cidades para manter elas limpinhas, cheirosas e bêbedas, como o sistema impõe e como as pessoas cumprem para continuar no seu mundinho das belas aparências.

Nesse cenário grotesco, a mídia tem um papel fundamental: a Globo, Televisa, Caracol, RCN, Telefe, etc., incentivam esse modelo de cultura, bombardeiam com superficialidade e conteúdos pobres, medíocres, tergiversam a informação, manipulam as mentes das milhões de pessoas que a assistem nas poucas horas vagas, depois da longa e miserável jornada de trabalho, e como num filme de Luís Estrada, o poder do crime até derruba e coloca presidentes, como atualmente estamos presenciando.

Essa classe política na cabeça a sociedade que ela constrói, perderan o que o grande José Martí denominou, no livro A idade do ouro (dedicado a todas as crianças da América): o “decoro”. Isso aparece no conto “Três heróis”, que abre o livro e no qual traz à memória os três heróis que para ele são sagrados: Simón Bolívar, o Padre Hidalgo e São Martin. Martí fala do “decoro”, uma palavra que em espanhol tem caído em desuso, assim como seu próprio significado, mas que tem a ver com respeito, dignidade, com o nível mínimo de qualidade de vida que deve ter uma pessoa. Num trecho do texto, o poeta diz:

Hay hombres que son peores que las bestias, porque las bestias necesitan ser libres para vivir dichosas: el elefante no quiere tener hijos cuando vive preso: la llama del Perú se echa en la tierra y se muere cuando el indio le habla con rudeza, o le pone más carga de la que puede soportar. El hombre debe ser por lo menos, tan decoroso como el elefante y como la llama.

O homem deveria, mas não é. Nessa empresa da “ordem” e do “progresso”, do individualismo, do ter, que caracteriza a história de Ocidente, a Modernidade, que tem sido imposta em todo o planeta e vendida como o caminho à felicidade, o homem não tem conseguido viver em harmonia com seus semelhantes; não tem conseguido aceitar as diferenças, viver em liberdade, respeito e dignidade uns com os outros. Atrás desses sonhos de riquezas, de acumulo, de consumo desmedido e irracional, colocou-se (o permitiu que colocaram nele) mais carga da que é capaz de levar.

E nesse caminho perdeu o que é mais importante: tempo de vida, como aponta outro grande latino-americano: Mújica, de Uruguai, homem velho e sábio, que já lutou e viveu bastante para nos dizer algumas verdades: que o mais importante na vida dos homens é o tempo para procurar ser felizes com as coisas simples, como Epicuro muitos séculos atrás já apontava, de ter tempo para compartilhar com seus seres queridos, para fazer o que realmente gosta.

Para tentar satisfazer todas as demandas que esse sistema macabro, perverso, exige para não ser expulso do jogo, o homem está levando mais peso do que pode carregar, quer dizer, somos piores do que os animais citados por Martí no seu texto. Além do mais esse humano se colocou no topo da pirâmide da natureza, achando que é superior às outras espécies (animais e vegetais) com as quais compartilha espaço, e por esta razão se acha no direito de consumir todas elas até exterminá-las.

Diante de tudo isso, a pergunta é o que fazer? O que fazer quando o apocalipse está na nossa frente?

Eu acho muito bom neste momento recorrer aos conselhos do Zizek, quando diz que nesses momentos de perturbação, quando não se sabe para onde ir, o quê fazer, o melhor é parar. Parar e observar. Observar detidamente. E para isso eu sou bom. Parar, observar, respirar fundo e analisar. Fazendo este exercício, o primeiro que aparece é o que vim apresentando antes: o patético show do esnobismo, de vaidade e de extermínio que exerce o medíocre ser humano.

Mas, justamente parando e detendo um pouco esse ritmo frenético da atualidade, aparecem monte de coisas: o sol e o mar desta Bahia maravilhosa na que tenho o privilegio de viver e que não para de me encantar; o corpo dessas morenas que dá vontade de ajoelhar; o riso e a malandragem dos habitantes, que descontroem até o mais rígido e suspicaz dos intelectuais. Aqui é uma terra onde o prazer é possível, que saiba tudo mundo e que morram de inveja os curtos de espirito. Aqui é e continuará sendo o lugar da fantasia.

Além disso, parando e olhando para latino-americana vemos que muitos dos escritores, pensadores e lideres têm desaparecido: Ernesto Guevara, Garcia Márquez, Ernesto Sábato, Carlos Fuentes, Roberto Bolaño, Eduardo Galeano, recentemente o último dos Parra, Nicanor e até o próprio Fidel, que parecia invencível. E a lista pode se estender bastante. O quê fazer? Olhar pro outro lado? Muitos deles morreram acreditando que a América Latina podia se unir.

Bom, então a primeira coisa importantes é entender e aceitar que devemos fazer o relevo geracional. Se a gente não faz, quem vai fazer? Se paramos e observamos, há muitas coisas nascendo e acontecendo. Um bom exemplo é o Zapatismo no México. Com uma população indígena, com diferentes etnias, locais e até com línguas diversas, que conseguiram se organizar para criar uma comunidade independente, à parte do sistema e até eleger uma candidata (mulher, de origem indígena) que os represente nas eleições à presidência do México. Isso é uma coisa sem precedentes. O Zapatismo conseguiu juntar as comunidades indígenas, organizar elas e que construam e lutem por um fim comum: a liberdade, a autonomia, o respeito, a inclusão, a dignidade, o ”decoro”, que cita Martí. O que nossos governantes (machos escrotos, na sua grande maioria) e a nossa população olvidaram.

O Zapatismo está nos mostrando que é possível viver em comunidade. Viver em paz ajudados uns pelos outros, isso que fique bem claro.

Nesse processo de parar e observar, que parece tão simples, mas não é (a maioria de pessoas “não tem tempo”), encontramos que existem muitas pessoas fazendo coisas. O lance é a cultura alternativa. Tem muita gente investindo na arte, na cultura, na educação; trabalhando, com unhas e dentes, para permitir que a cultura continue, por que do contrário o quê fica? Escuridão!

Isso não quer dizer que devemos abandonar as lutas sócias. Pelo contrário, a gente tem que sair, tem que se manifestar, tem que levar a cabo isso que Hard e Negri definem como fenômeno das multidões, aproveitando o poder das redes sociais, para tentar resgatar os valores da democracia, do bem comum e não apenas o particular.

Mas, o que eu quero ressaltar é que não devemos esperar que alguém mude as coisas por nós, um politico, um líder comunitário, por bom que seja. A primeira revolução é se revolucionar, algum dia disse isso Ernesto Guevara e tinha razão. O cambio, a mudança depende de nós.

Um dia andando pelas montanhas do Perú, perto de Cusco e do Vale sagrado de Urubamba, conheci um jovem camponês, de origem indígena, que tinha vivido toda sua curta vida nessas montanhas e perguntei a ele sobre o conceito da “Pacha-Mama”. Ele então me levou para um canto da sua humilde moradia, mas que olhava para todo o Vale sagrado, pegou uma vara de madeira e me explicou, como a uma criança: começou a desenhar no chão, e me disse: se você quer entender o que é a “Pacha-Mama”, a primeira coisa é que você teria que apreender o quéchua. Porque, por exemplo, em quéchua “avo” significa o que veio antes. Depois o jovem camponês pegou a vara desenhando no chão uma flecha e explicou: vocês ocidentais acham que são o presente e caminham pro futuro, vão adiante incansavelmente, sem olhar para trás. Mas, na nossa cosmologia, nós nos colocamos de costas pra esse futuro e olhamos pra trás, porque o futuro não o conhecemos, mas caminhamos pra ele. Porém, o passado sim o podemos enxergar para apreender dele, para o valorizar e saber de onde viemos, para não esquecê-lo e para apreender dele.

Devo confessar que para mim esta revelação mudou minha vida. Consegui entender de uma maneira muito gráfica o que Nietzsche, Heidegger e tantos outros mostraram, mas vindo de um humilde jovem camponês.

Então é isso minha gente, temos que caminhar pro futuro, mais olhando pra trás, porque o futuro não o cochemos, mas o passado sim. Dele podemos apreender, não cometer os mesmos erros, apreender dos homens que já passaram pelas situações que estamos atravessando. Conhecer a história, para não repetir ela, como disse García Márquez.

E acho que é essa justamente a sacada, nos librarmos dessas amarras do racionalismo, do euro-centrismo, e olhar com mais cuidado, respeito e atenção os ensinamentos que essas culturas apagadas, menosprezadas, dos povos oprimidos, e saqueados, têm para nos revelar. Apreender e regatar a relação que tinham com a natureza, com a Pacha-Mama, como tudo está conectado, como tudo faz parte de tudo, como a Física quântica, por exemplo, recentemente tem comprovado, mas que eles, esse povo originários, já sabiam desde centos e até milhares de anos antes.

Devemos apreender e ser conscientes do papel que temos na historia, e não esperar que nenhum filho da puta faça algo por nós (político, militar, intelectual, etc.)… Nós que devemos fazer. Nós que devemos construir o mundo que queremos, olhando pra trás, como dizem os sábios indígenas (e os filósofos ocidentais depois de tanto séculos de estudo também têm verificado), apreendendo dos nossos erros para não cometer mais, valorizando nossa história, nossa construção, olhando pros heróis, como Bolívar, Martí, Hidaldo, San Martín, Tiradentes, Che Guevara e tantos outros que deram sua vida pela liberdade e pela união dos povos da América Latina. E não ter que sacrificar mais eles: os nosso lideres, os nossos heróis.

Tem muita gente pensando nisso, trabalhando e lutando por isso. Por uma outra globalização, mais humana e digna, como Milton Santos enxergou. Me doe Argentina, com esse “boludo” sem graça nenhuma que é o Macri. Me doe Colômbia com esse fanatismo pelo para-militar e doente do Uribe, exemplo do rancor, do ódio e da violência que têm atravessado meu belo pais. Me doe Venezuela, tão rica e tão mal administrada, tão pressionada pelos Estados Unidos. Me doe Brasil, com esse engendro demoníaco e vampiresco do Temer: fora Temer e que vai pros avernos! Me doe América do Norte, agora no poder do patético e ignorante de Trump. Filhos das mil putas! Traidores, mentirosos, hipócritas, falsos! Eu os condeno, pelo poder que me outorga a História, a Antropologia, a Filosofia, e o BOM SENSO, ao fogo eterno e a que suas bolas ardam por toda a eternidade!…

Por isso, neste momento evoco a memória de Bolívar, de San Martin, de Hidalgo, de Tiradentes, de Camilo Torres, do mesmo Che Guevara e, claro, do grande José Marti, quem no conto citado com antecedência, falando desses heróis, aos quais ele terminou se juntando, diz:

Esos son héroes; los que pelean para hacer a los pueblos libres, o los que padecen pobreza y desgracia por defender una gran verdad. Los que pelean por la ambición, por hacer esclavos a otros pueblos, por tener más mando, por quitarle a otro pueblo sus tierras, no son héroes, sino crimínales.

Conferência Magna – A importância do pensamento de José Martí em tempos críticos da nossa América

Em comemoração aos 165 anos do nascimento do intelectual, humanista e democrata cubano, se realizou a Conferência Magna no Auditório do PAF III da Universidade Federal da Bahia.
Sobre esse grande revolucionário, Ernesto Che Guevara destacou: “Martí foi o mentor direto da nossa Revolução, o homem cuja palavra se recorria sempre para dar a interpretação justa dos fenômenos históricos que estávamos vivendo e o homem cuja palavra e cujo exemplo havia que recordar cada vez que se quisesse dizer ou fazer algo transcendente nesta Pátria… porque José Martí é muito mais que cubano: é americano; pertence a todos os vinte países de nosso continente e sua voz se escuta e se respeita não só aqui em Cuba, mas em toda América”.

Dentre as atividades da programação, o nosso Pacha e professor de Letras da UFBA, Dany Leobardo Velásquez Romero realizou uma palestra sobre a importância do pensamento desse grande herói cubano para América.
O evento foi uma realização da Universidade Federal da Bahia (UFBA), do coletivo PachaMãe, do Centro de Estudos Martianos, do Consulado Geral de Cuba para o Nordeste e da Associação Cultural Jose Marti da Bahia (ACJM).

PachaMãe na UNIVERÃO

No inicio do ano 2018 o coletivo PachaMãe teve a oportunidade de participar da primeira edição do projeto Universidade de Verão – UNIVERÃO, realizado pela Prefeitura de Lauro de Freitas em parceria com Instituições de Ensino Superior e do Governo do Estado da Bahia. É um projeto educativo que busca ampliar o acesso ao conhecimento através de uma abordagem lúdica-cultural.
Nesse contexto PachaMãe participou realizando várias oficinas para a comunidade sobre a diversidade e interculturalidade da América Latina, através de aulas de dança e música, oficina de escrita criativa, diversidade linguística e sessão de curtas-metragem.
Como em todo evento não teria sido possível sem a colaboração de nossos parceiros, nesta oportunidade agradecemos ao Núcleo Permanente de Extensão em Letras da Universidade Federal da Bahia, ao grupo de música Som de Cumbia, e a Chiquinha MiTzi, Anderson Gomez Camacho, Giovanni e Ângela.